Caminho de Cora Coralina, por Ricardo Gaspar

25/11/2020 18:08

Caminho de Cora Coralina 

“ Eu sou aquela mulher
a quem o tempo muito ensinou.
Ensinou a amar a vida
e não desistir da luta,
recomeçar na derrota,
renunciar a palavras
e pensamentos negativos.
Acreditar nos valores humanos
e ser otimista.”

O ano de 2020 ficará para sempre marcado e deixará alguma marca em todos nós, fomos lançados e obrigados a experimentar e nos reinventarmos, no meio disso tudo recebi o convite para o Caminho de Cora Coralina, 280 km cortando o coração do cerrado brasileiro e sentindo novamente os ares da liberdade, arrumei as malas e fui.

A história de Ana Lins dos Guimarães Peixoto precede o caminho, uma mulher que cursou até a terceira série, ganhava a vida como doceira, e só começou publicar seus trabalhos aos 76 anos.
Escrever era uma atividade paralela, chegou a ser convidada para Semana de Arte Moderna, mas por limitações impostas pelo seu marido, não pode participar. 
Um pouco mais tarde, fugiu no lombo do cavalo com Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas, saiu da cidade de Goiás para São Paulo, retornando a Goiás apenas em 1956, ficando até o final da vida.
Sua poesia vem das miudezas, do cotidiano, da sabedoria do dia a dia, de quem passou pela vida prestando atenção a cada detalhe do caminho.
Uma história que inspira, a coragem de se livrar das amarras, que é possível criar com qualquer idade, que nossa jornada tem ensinamentos diários e simples, e foi com esse espírito que desembarquei em Brasília e fui recebido pelo Nilo no aeroporto.

“O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada. Caminhando e semeando, no fim terás o que colher.

Dia 01 – Brasília
A capital de tanto vermos em jornais, acaba parecendo uma velha conhecida, larguei as malas ou a mala no hotel e sai para caminhar, a arquitetura branca e moderna de Oscar Niemeyer, tudo organizado em quadras norte e sul e a imagem da Praça dos Três Poderes, impressionam. As quadras não tem fim, mais tarde descobri ou fui informado que em Brasília não se anda, tarde demais, já havia feito uns 8km.

Dia 02 -  Corumbá de Goiás / Pirenópolis
Fomos de van até a cidade de Corumbá, onde descarregamos as bicicletas em frente a uma igreja, como se fosse combinado, uma apresentação popular, com cavaleiros paramentados e com máscaras, dançavam em pé sobre seus cavalos com músicas populares ao fundo, a famosa Cavalhada, que celebra a festa da padroeira Nossa Senhora da Penha.
Montamos na bike, carimbamos o passaporte e seguimos para o primeiro dos 58 quilômetros que nos separavam do nosso destino, Pirenópolis. 
O sol no cerrado não dá trégua, e a baixa umidade castiga quem não está acostumado, os vários pontos de água pelo caminho, permitem um refresco e retomar o pedal com o “radiador resfriado”.
Cruzamos o Parque Estadual dos Pireneus e chegamos no famoso Ventilador após uma longa subida, o estradão engana com buracos com areia, é preciso atenção principalmente nas descidas mais agressivas.
Chegamos a linda pousada ao fim da tarde, recompensados com um banho de piscina e dadinhos de tapioca para enganar a famoso, e aguardar a famosa culinária goiana.

Dia 03 – Pirenópolis / São Francisco de Goiás

Se havia um dia com expectativas criadas era esse, todos falavam da subida do Seu Quinzinho, figura que representa o estado de Goiás e o Caminho de Cora, depois de tantos anos rodando de bicicleta, achei que seria mais uma subida, me enganei e não foi com a subida.
Saímos cedo com novos acompanhantes, passamos pela Fazenda Babilônia e toda sua história desde 1800,atravessamos uma roda d ‘água e fui tomado pelo encantamento à aquele pedaço de terra e comecei a processar aquele mundo novo.
Fizemos a subida do seu Quinzinho entre estradões, pedras e singles, quando chegamos ao ponto mais alto, aquela foto de conquista, sem imaginar, que a descida seria beirando a encosta da montanha, com pedrinhas, pedras, e pedrões impedindo o único caminho possível, a chegada foi pura comoção, nunca fiquei tão feliz de ver alguém, era Seu Quinzinho, carregando uma penca de banana nas mãos e olhando como se meu feito não fosse tão grandioso assim, me falou que tudo que eu desci uma menina tinha subido sozinha semana passada, tomei 3 copos de suco de seriguela e dois calmantes para me acalmar.
De volta a terra, chegamos a São Francisco de Goiás, estradões sem fim e paramos para um almoço típico goiano feito só para nós, o famoso arroz goiano, uma mistura maluca que comi até dar câimbra no maxilar, pousada, banho e cama.

“ Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.” 

Dia 04 – São Francisco de Goiás – Itaguari
Hoje a surpresa era a pousada que terminaríamos o dia, suspense criado e grupo todo desconfiado.
Na saída passamos no Museu de Cora, onde tivemos uma explicação apaixonada da região, enquanto o moço não economizava palavras, eu olhava para fora e via o sol cada vez mais alto, maior e mais quente, iríamos sofrer.
Tivemos que carregar um punhado de castanha baru e dois abacaxis, porque goiano é assim, caloroso e receptivo.
Mais um dia no cerrado brasileiro, de personagens, de frutas como pequi, seriguela, tamarindo, caju vermelho, da comida típica como a gueroba, do sol incansável com encontros improváveis de água, do estradão empoeirado, de um Brasil rico.
Hoje encontramos alguns pés cheios de caju vermelho, tem um doce mais ácido, enchi o bolso de trás da camisa e descobri a noite que é ótimo para manchar as peças, o tamarindo comi com moderação, pois já tinha ouvido relatos do desarranjo que dá com a turma que se empolga.
Paramos na beira de um rio para nos refrescar e curtir um pouco a preciosa presença de sombra, algo não tão comum no percurso, esse dia durante o picnic na igreja, um vento inesperado e forte arremessou algumas frutas da árvore que estavamos embaixo sobre nós, sorte que todo mundo estava de capacete.
Finalmente chegamos a pousada, em cima de um posto de gasolina, um bar embaixo, existe alguns boatos que alguns dormiram no bar ao lado da geladeira porque estava mais fresco, essa noite de 15 em 15 minutos estouravam bombas, ninguém soube explicar a razão.

“ O saber a gente aprende com os mestres e os livros. A sabedoria se aprende é com a vida e com os humildes.” 


Dia 05 Itaguari – Goiás Velho

Chegamos ao último dia de pedal, as pernas mais cansadas e aquela vontade de completar todo percurso, já bate aquela saudades da turma, das brincadeiras, dos perrengues, então é curtir cada km.
De todos os dias de pedal, esse provavelmente é o mais travado, seguimos bem por 85% do percurso, mas o final que passa pelo túmulo do famoso Chico Mineiro é mais travado, um tal de pula cerca, carrega bike, passa por cima de pedra e se esconde de boi.
Também é a parte do caminho com sinalização mais difícil, é preciso ficar atento para não errar nas bifurcações, fizemos uma parada mais longa no almoço, para esperar uma trégua do sol, que não existiu.
Entramos em um single, uma parte com mato mais alto até voltarmos a estrada e encontrarmos um picnic montado que parecia uma miragem, chupei três laranjas com casca e tudo, a promessa que dali para frente era só descida, só promessa.
Os últimos kms, foram de uma descida longa cascalhada, com a poeira levantando e o sol se pondo, um visual que era pura poesia, já tinha dado aquele nó na garganta.
Paramos na igreja, onde aguardamos todos e aquela cumplicidade de feito concluído já estava no ar, faltava o asfalto e chegar na cidade e no Museu de Cora, ver a estátua dela no banquinho.
A descida é alucinante, entramos na cidade e a Ave Maria começou a sair das pequenas caixas da via principal ao lado do rio, foi o que faltava para os olhos transbordarem.
A linda igreja da praça, o sol se pondo, a imagem de Cora e o grupo se abraçando, para finalizar essa história.
Na pousada, um violão e todos cantando junto, aquelas músicas que aliviam o coração e descansam as pernas.

Importante: O caminho de Cora não tem infra durante o percurso, importante você ir com alguém que opere na região e tenha experiência, a Logística Aventura foi quem cuidou de tudo.

Ricardo Gaspar publicou esta matéria na Revista Bicicleta: https://revistabicicleta.com/cicloturismo/caminho-de-cora-coralina/

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